Aglomeração 03: Vale a pena (Francis Ivanovich)

13/04/2020

Textão de Francis Ivanovich*

Aglomeração, ajuntação, agrupação, misturação, multidão, reunião...

A pandemia que nos alucina, que invoca vaticínios, que nos faz penetrar estranhos mundos; nos defronta com bizarros comportamentos, nos surpreende a cada instante, na velocidade dos bits e bytes escancarados na telinha dos nossos smartphones turbinados de fake gigas.

Somos personagens de uma não ficção, nada ilusória, que nos desperta a cada amanhecer e nos aterroriza quando tentamos dormir sobre travesseiros desinfetados. Não sabemos mais por onde ir, mesmo que o desejo seja o de meter o pé na porta, arrancar as janelas, explodir os telhados, arrancar a máscara invisível de nossa falta de civilidade.

- O mal está lá fora ou aqui dentro?

Mostrar nossa face nua e crua, a bocarra tossindo desesperos e desamparos, espirros em desejos frustrados, contagiado pelas nossas impossibilidades como sementes que se deitam em solo infértil.

Ficamos pasmos com toda a loucura possível. Com esses loucos que se dizem santos, que se vestem de salvadores, que se armam de estrategistas, que se fingem estadistas; desses seres camuflados de humanidade, nos dando conselhos, nos apontando direções, eles que estão mais perdidos que a própria perdição.

Cansados, esgotados, exauridos, machucados não resistimos aos convites cínicos, as insinuações insanas de passearmos pela floresta repleta de lobos, de escalar montanhas que desabam, mergulhar em águas revoltas e envenenadas. A tentação nos é imensa, por não suportamos nossa própria companhia; não suportamos o diálogo com esse estranho ser que nos habita, que pede atenção, e que insiste em se revelar verdadeiro. Como suportar a tudo isso sem consumismo, publicidade, celebridades, e anestésicos da alma?

Gurus, sábios, cientistas, artistas, jornalistas, especialistas, infectologistas, vigaristas... Todos te proporão a salvação: Faço isso! Desfaça! Refaça! Não faça! Conselhos! Dicas! Fórmulas! Rezas! Simpatias! Meditação! Yoga! Mentalização! Mantras! Orações! Cuidados! Métodos! Estatísticas!

Percebemos então que nos sentimos sozinhos. Angustiados por não sabermos nada; desconhecermos tudo;  estranharmos a nós mesmos, o outro, o mundo e a vida. Consumidos pela ilusão das conquistas materializadas nos holerites da eurofia mensal, vemos com clareza e dureza que a mais frágil brisa, micro-criatura, é mais imponente do que o maior arranha-céu erguido sobre a terra.

Perplexos, atônitos, confusos, atormentados, encurralados como ratos, resta encolher-nos em nosso ninho e procurar encontrar um sentido para a própria vida. Ir ao encontro da coragem de viver e nos perguntarmos, sinceramente, se o caminho  vale a pena.

Após uma pausa, nossa voz interior nos diz suavemente:

- Vale!

* Jornalista, dramaturgo e cineasta.

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