Tempos sombrios (Luciene Carris)

24/07/2020

Textão de Luciene Carris

Recentemente, muitos brasileiros ficaram abismados e revoltados com uma notícia publicada em diversos veículos da imprensa envolvendo um desembargador e um guarda que lhe aplicou uma multa pelo descumprimento de uma lei que obriga o uso de máscaras em ambientes externos. Outro episódio amplamente difundido foi a cena entre um fiscal da prefeitura e um casal que descumpria a regra clara e inquestionável, pelo menos, em tempos de pandemia de Covid-19, de distanciamento e de aglomeração social em uma das ruas do nobre bairro do Leblon.

Em ambas situações observamos uma prática, que infelizmente ainda é bem comum no comportamento do brasileiro. As imagens reportavam a invocação de uma certa posição social por tais cidadãos acompanhada ainda de outra atitude nada louvável, a humilhação do outro considerado inferior. Na ótica deles, subordinados eram os representantes da Lei: o guarda municipal e os fiscais da vigilância sanitária. Tanto o desembargador quanto o casal utilizaram de tais argumentos, de sua formação profissional e de sua posição social, que supostamente garantiria um determinado status social e determinadas prerrogativas. Nesta inversão se consideraram, portanto, acima das regras pactuadas pela sociedade.

Tais acontecimentos remetem a minha infância. A expressão "Dotô" (doutor), eu ouvi em diversas situações nas histórias dos meus pais e de outros familiares. Eram eles indivíduos que engrossavam a massa de trabalhadores braçais, não-brancos e sem diploma superior, considerados "inferiores" perante os olhos de um determinado segmento social. Sem querer apontar generalizações ou fazer injustiças, na mentalidade e nas ações de uma parte da classe média branca da zona sul carioca se reproduzia um certo olhar sobre o outro, que não tem relação alguma com o conceito de alteridade. Tempos depois, compreendi o porquê de algumas situações que eu escutava indignada. Assim, constatei que estariam associadas à valorização de uma certa tradição bacharelesca e à ideia de uma sociedade hierarquizada.

O fenômeno da "carteirada" ou do "você sabe com quem está falando?" não é recente na história do Brasil. Aliás, estudiosos se debruçam sobre isso como o antropólogo Roberto DaMatta e a historiadora Lilian Schwarcz, entre outros. O que está em jogo: a lei realmente é válida para todos? Somos todos iguais? Pois, temos tantos exemplos que provam o contrário. Além disso, tais episódios recuperam um ranço do passado brasileiro, que se mantém ainda bem consolidado na estrutura social e mental da nossa sociedade. São infindáveis o uso de símbolos de poder que passam desde pelo bairro onde um indivíduo mora, onde estudou, qual carro possui, onde trabalha e em qual função, etecetera.

Diferentemente do passado, hoje muitas dessas situações acabam sendo flagradas pelas câmeras dos celulares e viralizam nas redes sociais, ganhando os tais "15 minutos de fama". Mesmo comprovado o comportamento inadequado, estes indivíduos se defenderam utilizando argumentos questionáveis, mas que duraram até um certo momento.

O desembargador depois de muita polêmica se desculpou pelo excesso. Passou a adotar um tom bem diferente daquele gravado, provavelmente em decorrência da repercussão negativa e das acusações de violação do código de ética da magistratura. Então, a postura de arrogância e de prepotência se manteve inalterada. Ao que parece, a mudança de comportamentos só ocorre mesmo quando há uma probabilidade real de prejuízo financeiro e legal, manchando as suas reputações, como no caso do casal, cuja mulher foi demitida pela empresa onde trabalhava.

O certo é que tais fatos trazem à tona um período o qual poucos mandavam, enquanto a maioria obedecia, diga-se de passagem, este grupo era representado por uma maioria de escravos e de trabalhadores pobres. Mas isso me levou à outra reflexão. Desta vez, sobre o provérbio popular que todos certamente conhecem: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo". Atravessamos uma fase extremamente delicada na página da história brasileira. Alguns consideram os últimos anos como um retrocesso, que se pauta no autoritarismo, no negacionanismo e no revisionismo histórico, entre outros aspectos.

Muitos acreditavam, assim como eu, que a pandemia pudesse transformar a sociedade levando a um novo patamar, reforçando a solidariedade, a empatia, a compreensão e a tolerância em razão da conjuntura de atual incerteza e do medo do futuro. Passamos de 84 mil óbitos no território brasileiro decorrentes desse inimigo misterioso. É incompreensível a ignorância dos dados e da relevância da proteção, bem como da obediência às regras de distanciamento social a favor da vida.

Contudo, talvez não seja assim tão inexplicável, pois, como comentei, uma grande maioria da população nega a existência ou a força da mortalidade do vírus. Nesse sentido, parece que tudo se mistura numa espécie de "saco-de-gato" cuja raiz é a nossa formação histórica-social. Vivemos tempos sombrios e tristes em vários aspectos da vida coletiva e individual, porém, guardo lá no fundo, bem no fundinho, alguma esperança por uma mudança positiva para a humanidade.

Não é uma novidade, nem uma raridade na história tempos nebulosos como o atual. Não podemos esmorecer como afirmou uma filósofa conhecida: "(....) mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra". (Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios, 2008, p. 09).

Luciene Carris é historiadora e escritora.

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