Separações 01: O Lenine tá certo! (Francis Ivanovich)

22/04/2020

              Francis Ivanovich*

Com a pandemia fiquei a pensar que há muito estamos separados de alguém tão precioso. A máscara que utilizamos pode simbolizar muito bem essa separação. As palavras abafadas por detrás do pano, os cheiros tornaram-se amenos, nossa expressão facial desapareceu, os sentidos já não tocam a vida como antes.

Até as crianças estão separadas da infância. É triste ver os parques vazios, com pombos pousados nos balanços, o silêncio ensurdecedor na gangorra da distância. Brinco com minha neta Nalu pela tela do celular. Jogamos peteca, acredite. Ela atira a peteca e eu, do outro lado da tela, tento inutilmente devolver a jogada. Vamos nos adaptando e recriando a separação dolorosa.

Ao deitarmos na cama, à noite ou durante o dia, pensamos em todas as separações vivenciadas; dos que amamos, e até daqueles que víamos vez por outra, distraidamente, nas esquinas do cotidiano. Já tive saudades do pipoqueiro, do jornaleiro, e do vendedor de amendoins. Os dias perderam cara, voz, cheiro, sentidos.

Em nosso confinamento, mais que necessário, constatamos que a vida tem uma dimensão maior do que o calendário e o relógio podem oferecer. O tempo mudou dentro da gente. Estamos vivendo tempos de astronauta, viajante espacial, monje isolado na montanha. Um novo tempo interno faz nascer um olhar mais atento para alguém que vínhamos desprezando e destruindo.

Certamente você preferia estar agora caminhando livremente pelos parques ou na praia, sentindo o sol no rosto; flanar pela cidade admirado as vitrines; sentar num boteco com os amigos e falar sobre o jogo de domingo. No entanto, neste momento isto não é possível. Resta-nos o contato com os que temos afeto, através da tela fria e suja, que nossos dedos descontaminados tocam a todo instante, tal Adão desesperado tentando tocar o dedo de Deus, como na pintura de Michelangelo.

Angustiados com o futuro imprevisível, repetimos para nós mesmos que tudo vai passar, que em breve curtiremos de novo as coisas boas da vida lá fora, que de tão corriqueiras, por vezes passavam em branco. A vida em grupo, em sociedade, com sua maravilhosa composição étnica, estética e dialética, nos faz muita falta. A mesma vida que com seus dramas e alegrias se esparrama na literatura, cinema, teatro, pintura, poesia, música, psicologia, amizade, e que hoje se resume a um lançamento no Netflix da palma da mão.

Estamos separados da vida cotidiana lá fora, das viagens tão sonhadas, dessa senhora que tantas vezes foi traduzida em folhetos e pacotes turísticos da CVC. A vida travestida de todas as cores, coberta de joias da arquitetura, luz e neve, com seus contornos sensuais de montanhas, ventre de águas cristalinas, pele de árvores e florestas, voz de ventos e cachoeiras dançantes. O mundo como objeto-prêmio turístico nos meses de férias e por bom desempenho laboral.

Afinal de quem realmente estamos separados?

A resposta é simples.

Da própria vida: da mãe Terra.

A Terra oprimida pelo poder do capital; esmagada pelo consumo que só produz lixo, desigualdade, injustiças, numa total falta de conexão com a natureza. A Terra vítima das políticas mesquinhas e opressoras, que semeiam armas e fome. A Terra de poucos ricos e bilhões de pobres, explorados sem piedade.

Até que o vírus fique longe de vez das nossas células, teremos de repensar nossas ações, nossas escolhas nesta Terra. Ela está nos dando uma boa oportunidade. Ela sussurra em nossos ouvidos internos, mais atentos do que nunca, de que não é mais possível que ela seja tratada como produto de consumo fetichista.

A Terra não nos pertence, ela é também morada de cada formiga, morcego, bactéria e vírus. Não é possível pensarmos na Terra de maneira tão egoísta, como  donos de tudo o que há nela. A finitude bateu à nossa porta.

Mas a Terra é paciente, e nos propõe neste momento uma longa pausa. Nos convida ao silêncio, respiro, e reflexão. Há muito estamos separados da nossa própria casa, da nossa própria vida, que é tão rara, este planeta incrível que nos encanta e nos ampara.

É hora de realmente nos conectarmos com a Terra, caso contrario, ela terá de se livrar da espécie humana. Hoje 8 bilhões de pessoas pisam a Terra. Um desafio enorme para a natureza. Precisamos usar nossa inteligência para dar fim a essa separação absurda.

Recordo da canção de Lenine, Paciência, letra que reproduzo aqui:

 Paciência

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para
Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é tempo que lhe falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber
A vida é tão rara (tão rara)

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para não

O Lenine tá certo! A Terra-Vida nos pede um pouco de paciência.

* Avô da Nalu, Jornalista, dramaturgo e cineasta.

Link canção Paciência: https://www.youtube.com/watch?v=4GFtjl6Gsjk

© 2020: Todos os direitos reservados TEXTÃO - cada texto aqui publicado é de inteira responsabilidade do seu respectivo autor.
Desenvolvido por Webnode
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora