Para que servem os velhos? (Ricardo Gouveia)

20/07/2020

Textão de Ricardo Gouveia

A desumanidade trazida à tona pela peste no nosso País está sendo uma demonstração inequívoca de que estamos muito longe de atingir um patamar civilizatório mínimo. Desumanidade é, para mim, a expressão correta para definir a indiferença com que a maior parte da população está lidando com a pandemia e a catástrofe humana que já sucumbiu quase 80 mil brasileiros. A maioria das pessoas já trata a pandemia e o ainda necessário isolamento social como coisas do passado, embora continuemos com uma média inalterável em torno de mil mortes diárias há algumas semanas. Além disso, não sabemos se foi atingida a estabilidade, chamada de platô, que daria início à queda dos números de infectados ou se, com o afrouxamento do isolamento social nas últimas semanas, o gráfico voltará a verticalizar.

Seja o que for, vive-se como se a peste tivesse sido superada e pudéssemos nos referir a ela como mencionamos, de modo distante, a gripe espanhola que devastou a humanidade no início do século XX. Outro dia, uma amiga com a qual não falava havia alguns meses me perguntou como eu havia passado a quarentena. Respondi que continuo na quarentena. É claro que a dolorosa experiência de ter perdido um familiar ou um amigo na pandemia não é uma realidade para a grande maioria dos brasileiros, visto que, até o momento, computamos quase 80 mil mortos num universo de 210 milhões de habitantes.

Estatisticamente, a maior parte das pessoas não perdeu um ente querido ou um amigo para a doença. Mas devemos respeitar o sentimento dos familiares e amigos dos quase 80 mil mortos. É uma questão de civilidade. E devemos também ter um comportamento responsável para que menos pessoas morram, buscando, sempre que possível, o isolamento social, evitando as aglomerações e usando máscaras em via pública. Diante da possibilidade de contribuirmos, individualmente, e no somatório de forças, coletivamente, para que menos pessoas sejam infectadas e morram, convenhamos que se isolar socialmente, usar máscara e não se aglomerar não é nenhum esforço extraordinário.

Nisso que chamei de desumanidade há um elemento que, salvo melhor juízo, me parece decisivo para a indiferença com que a maior parte das pessoas está lidando com essa mortandade de quase 80 mil pessoas: a maioria dos mortos é de gente velha. Em São Paulo, onde já morreram 20 mil das 80 mil pessoas levadas pela peste, 74,6% dos sepultados tinham mais de 60 anos. É duro reconhecer, mas me parece fato que, neste mundo capitalista e materialista, a avaliação a respeito da importância das pessoas tem um viés utilitário, que torna os velhos descartáveis, inúteis e, pior, desprezíveis.

Num país onde a educação, a cultura e a ciência nunca foram devidamente respeitadas e reconhecidas como molas-mestras para o crescimento da nação - situação que se tornou pior com a chegada do capital reformado do Exército à presidência da República -, é uma consequência incontornável que a vida daqueles cujos ossos e carnes definham lentamente não tenha nenhuma importância. Afinal, a experiência, o conhecimento e a sabedoria que acumularam em muitas décadas de existência não têm utilidade alguma para a maioria das pessoas.

O fato de a maior parte dos mortos pela peste ser idosa, infelizmente, torna a tragédia menor para muitas pessoas. Veja que os governos e prefeituras, nas últimas semanas, por meio de atos que classifico de irresponsáveis, liberaram a volta do funcionamento de quase todas as atividades: shoppings, salões de beleza, comércio de rua, academias de ginástica, clubes, práticas esportivas nos calçadões das orlas etc. E já há, também, uma programação de retorno das universidades públicas federais. Perceba como o retorno às aulas do ensino fundamental, onde estudam as crianças, é onde os governos mais resistem em autorizar a retomada, a despeito da forte pressão dos sindicatos dos proprietários de estabelecimentos privados de ensino.

Na sua esperteza política, eles sabem muito bem que o efeito de ter crianças - que hoje representam casos isolados - em número considerável entre os mortos seria o oposto do manifestado em relação aos velhos levados pela pandemia. No seu frio cálculo político - que só funciona porque a ignorância popular o corrobora, quando deveria repudiá-lo -, os governadores e prefeitos, assim como o presidente por omissão, sabem que enquanto quase 80% dos mortos forem velhos, a situação se configura menos dramática.

Vidas de velhos são, praticamente, aos olhos da maioria, desprezíveis. Mas com vida de criança não se brinca. Morte de criança arrebata, comove, cala fundo. Prova disso é o desaparecimento da menina britânica Madeleine McCann, ocorrido em 2007, em Portugal, que até hoje mobiliza a atenção mundial.

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Ricardo Gouveia é pai de três filhos, jornalista e apaixonado pela língua portuguesa escrita e cantada

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