O ódio cega (ricardo Gouveia)

03/08/2020

Textão de Ricardo Gouveia

O ódio talvez seja o mais destrutivo de todos os sentimentos humanos. É com ele fervilhando nas veias que, geralmente, os xingamentos são proferidos, os dedos indicadores apontados, os socos desferidos, os pescoços estrangulados, os gatilhos disparados e as mensagens violentas postadas nas redes sociais. Claro que boa parte de tudo isso pode ser feita sem o ódio borbulhando nas veias. Mas muitas vezes a frieza de um ato cruel pode ser o desdobramento do ódio que a gerou.

Quero dizer com isso que as tentativas de assassinatos de reputações, prática repugnante que temos visto em larga escala nas redes sociais, podem ser cometidas com ou sem fúria. É o que podemos chamar de ódio silencioso. É ele que move as pessoas a insultarem, caluniarem e difamarem os desafetos, os que delas divergem ideologicamente, os que cultivam pensamentos políticos diferentes dos seus, os que levam uma vida sexual por elas considerada reprovável, os que são adeptos de religiões pelas quais não têm nenhum respeito e os que, por conta da cor de sua pele, na opinião delas, devem ocupar somente funções subalternas.

Em tempos sombrios, marcados pela triste substituição do diálogo pelo insulto, do confronto de ideias pela ofensa e da discordância intelectual pela agressão física, o ódio, silencioso ou não, parece estar se tornando o mais predominante dos sentimentos na sociedade brasileira. A pandemia revelou o quanto estamos divididos. A peste demonstrou que continua grandiosa a nossa capacidade de nos solidarizarmos em momento difíceis, por meio de doação de alimentos ou trabalhos voluntários. Mas, em contraponto à reconhecida solidariedade do brasileiro, constatamos também o impressionante crescimento de segmentos indiferentes ao sofrimento alheio. E, ao mesmo tempo, descobrimos ainda que o sentimento de ódio pode estar presente entre os solidários e os indiferentes, sobretudo quando eles entram em conflito.

Os distintos comportamentos que temos visto nesses pouco mais de quatro meses da pandemia no País estão sendo criticados com ódio. Os que, como o presidente da República, optaram pelo negacionismo, pelo desprezo pela opinião da Organização Mundial da Saúde (OMS), pela defesa do uso de remédios rejeitados pelos cientistas e são contrários ao isolamento social e ao uso de máscara criticam com ódio os que cumprem as recomendações das autoridades sanitárias. Os obedientes às orientações dos cientistas não têm ficado para trás. Por meio de palavras carregadas de ódio, eles têm reagido com fúria aos que se aglomeram e não usam máscaras, acusando-os de serem responsáveis pela proliferação da doença que já matou mais de 90 mil brasileiros.

Não resta dúvida de que o rompimento do isolamento social e o desleixo com as precauções necessárias foram decisivos para que o País ficasse somente atrás dos EUA em número de infectados e mortos. Também sou duramente crítico com todos aqueles que, mesmo sem a necessidade imperiosa de ir à rua para garantir a sua sobrevivência, saíram e, sem tomar os devidos cuidados, contribuíram para que tivéssemos milhões de contaminados e milhares de mortes. Mesmo assim considero inadmissível que a discussão descambe para o ódio, o mais destrutivo dos sentimentos.

O ódio cega. Precisamos de luz, clareza, compreensão e solidariedade. E máscara.

Ricardo Gouveia é jornalista, pai de três filhos e apaixonado pela língua portuguesa escrita e cantada

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