O desembargador, o guarda e a Lei (Ricardo Gouveia)

24/07/2020

Textão Ricardo Gouveia

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deveria punir com a pena de retratação à nação brasileira o desembargador que humilhou o guarda municipal que, mesmo diante da carteira de magistrado colocada na sua fuça, teve a ousadia de multá-lo por andar pela orla de Santos (SP) sem máscara, em desobediência ao decreto municipal que obriga o uso do equipamento em locais públicos. Embora a humilhação tenha vitimado diretamente o guarda municipal, a quem o magistrado chamou de "analfabeto", antes de rasgar a multa e atirá-la ao chão, o ato reprovável atingiu a nação brasileira, quase toda.

Foram humilhados todos aqueles que, mesmo desamparados pela grande maioria dos governos nos últimos 520 anos, sempre cumpriram as leis, ainda que nunca tivessem muitos exemplos a seguir advindos da maioria das autoridades públicas do País. A arrogância do desembargador foi um tabefe na cara de todos que, mesmo a contragosto, atenderam às determinações das autoridades sanitárias, isolaram-se em suas casas e passaram a deixá-las somente com máscaras.

O desprezo do magistrado pelo servidor público que o multou foi uma cusparada no rosto de milhares de funcionários que estudaram, prestaram concursos, ingressaram na administração pública e atendem a população com honradez. O desapreço do togado pelas leis, com base nas quais ele julga as pessoas que as desrespeitam e pune com penas que podem chegar à privação da liberdade, foi um joelho no pescoço de todos que as cumprem, civilizada e exemplarmente. Enquanto houver ar, é preciso gritar.

A manifestação de nojo do desembargador àquele que agiu para exigir o cumprimento da determinação que visa a reduzir a propagação da pandemia e preservar a saúde coletiva foi ofensiva especialmente aos médicos, enfermeiros e auxiliares que estão arriscando as suas vidas para proteger as nossas.

O escárnio manifestado pelo representante da elite do Poder Judiciário, ao saber pelo guarda que, caso rasgasse a multa e a jogasse ao chão, conforme prometera, seria multado também por jogar lixo na rua, atingiu todos aqueles que são capazes de andar boas distâncias com um papel na mão até encontrar uma lixeira.

A presunção do homem da Justiça, ao apresentar a sua carteira de magistrado para intimidar o guarda que não se omitiu da função pública que lhe foi confiada, botou na parede todos os que temem autoridades e agentes da lei. Ambos deveriam ser respeitados e admirados, conforme ocorre nos países do mundo civilizado, mas a maneira negligente como parte deles as descumpre, como também o modo autoritário como exige que a população as cumpra, desestimulam o respeito e a admiração.

A prepotência do integrante do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que, no meio do ato de humilhação ao guarda, sacou, depois da carteira, o celular e ligou para o secretário de Segurança Pública do município para avisá-lo que o "analfabeto" parecia não saber com quem estava falando, foi emblemática. Afinal, o magistrado que desonra a toga está muito bem protegido pela impunidade.

A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) garante aos magistrados as prerrogativas da vitaliciedade e da irredutibilidade de vencimentos. A pena máxima a que estão sujeitos, aplicada somente em casos gravíssimos, como vendas de sentenças a traficantes e desvio de recursos públicos, é a de aposentadoria compulsória. Nos últimos 10 anos, 58 magistrados, dentre os quais 22 desembargadores e um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foram aposentados compulsoriamente pelo CNJ. Juntos, nesse período de uma década, receberam R$ 137,4 milhões em proventos.

Defendo que o desembargador que humilhou o guarda e quase toda a população seja punido pelo CNJ com a pena de retratação à nação brasileira, como se ela estivesse prevista na legislação. Não está, mas deveria. Da mesma forma que também deveria haver a previsão de expulsão da magistratura, sem direito a aposentadoria, em caso de cometimento de crimes gravíssimos, conforme ocorre com qualquer funcionário demitido do serviço público.

No Brasil, nem todos são iguais perante a lei.

Ricardo Gouveia é pai de três filhos, jornalista e apaixonado pela língua portuguesa escrita e cantada

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