Formiga elétrica? (Luciene Carris)

14/08/2020


No último dia 12 de agosto, em sessão remota, o Congresso rejeitou o veto presidencial contra a regulamentação da profissão de historiador no país. Trata-se de uma antiga luta dos historiadores e de sua principal entidade representativa, a Associação Nacional de História (ANPUH), apesar da controvérsia existente sobre o projeto entre alguns profissionais da área, que questionam à exclusão de renomados estudiosos que não têm o diploma na área. De todo modo, é uma conquista festejada pela grande maioria, afinal é um reconhecimento profissional e a possibilidade de novas garantias. Em meio à pandemia do Covid-19 é importante trazer algumas reflexões sobre o futuro das profissões no país e no mundo.

A pandemia chegou e o isolamento social imposto condenou muitos trabalhadores ao teletrabalho, também conhecido como homme-office. Muitos tiveram que - obrigatoriamente - se adaptar e aprender a utilizar, sem pestanejar, os recursos tecnológicos disponíveis, as plataformas digitais, bem como outros programas acessórios, ou seja, se amplificou o uso dos computadores e a necessidade do acesso integral à internet.

O que simboliza para muitos é que não há mais vida fora do meio digital. Ao pesquisar sobre as profissões do futuro em um mundo pós-pandemia, não foi nenhuma surpresa constatar o surgimento de profissões ligadas diretamente à área da tecnologia como TI ou que dependam de aparatos tecnológicos.

Com a possibilidade do contágio se difundiu a telemedicina, algo questionável até pouco tempo atrás. Áreas ligadas ao meio ambiente, à globalização, à qualidade de vida, virtualização e ao envelhecimento da população parecem que são a bola da vez. Neste rol, se desdobram ainda o comércio eletrônico, à biomedicina, sem esquecer das profissões tradicionais como direito, engenharia, medicina, administração, etecetera.

Uma outra área digna de nota é a educação à distância que não era bem uma novidade, mas se expandiu de fato. Atualmente é mais acessível assistir algum curso sentado tranquilamente no sofá da sala. Mas, outras questões despontam. Pois, nada substitui a relação de aprendizado professor-aluno que uma sala de aula pode oferecer, além disso, a ausência de sociabilidades entre os discentes também pode atrapalhar o desenvolvimento individual.

Em relação aos professores, causou-me espanto uma matéria publicada na página do UOL, que aproveito para reproduzir integralmente aqui: "Deverão ter total domínio tecnológico e atuação forte e alimentação constante de conteúdo nas redes sociais, blogs e canais de informações como YouTube e Podcasts, para garantir o aprendizado e interação constante com os alunos" (Empregos e Carreiras, UOL, 20/06/2020). Então, assim, não basta se graduar numa determinada área, se especializar na sua profissão, ao que parece, ficamos reféns da tecnologia e sem ela, estamos excluídos. É bem verdade que grande parte da população brasileira sequer tem acesso ao saneamento, à saúde ou à educação, que está lá garantida na Constituição Federal de 1988. Para muitos o que sobrará é a precarização ou a uberização do trabalho.

Recentemente, li um conto de ficção científica do escritor estadunidense Philip K. Dick (PKD) intitulado de "Formiga elétrica" do livro Minority Report (A nova lei). É a história de um homem que acorda no hospital com a mão amputada. O conto escrito em 1969 já anunciava a nossa dependência tecnológica em relação aos computadores, entre outros aspectos. Não pretendo apresentar algum tipo de spoiler, mas deixo a curiosidade aqui latente. O autor é conhecido pela adaptação do seu livro Androides sonham com carneiros elétricos? para o filme Blade Runner ou O caçador de Androides.

É bem verdade que o seu amplo interesse pela filosofia, história, psicologia, língua alemã, por exemplo, tenham contribuído na escrita de muitos de seus textos. O grande perigo dessa dependência tecnológica pode surgir de ordem moral ou ética. A formiga elétrica não sente, não pensa, não questiona, ou seja, não vive, apenas produz e sobrevive indiferente ao que há ao redor em seu mundo, como parte da engrenagem de um organismo ou de um sistema. Então, acredito que você, caro leitor, deve conhecer alguém mais ou menos assim. Mas, será que no final das contas seremos formigas elétricas?

Luciene Carris é historiadora e escritora.

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