Milhares de George Floyd (Ricardo Gouveia)

12/08/2020

Textão de Ricardo Gouveia

Os largos gestos de solidariedade, tão típicos por aqui em situações de grandes tragédias, nos induzem a achar que a nossa brasilidade é preponderantemente dominada pelo que o ser humano tem de melhor. Contudo, a ameaça à vida provocada pela pandemia, a angústia pelo desemprego em massa e o isolamento social prolongado, a irritação com a ocupação de um mesmo espaço com as mesmas pessoas 24 horas e o tédio decorrente de dias parecidos têm relevado a outra face da moeda.

Intensificaram-se as manifestações de intolerância, que vão desde a vociferação daqueles que insistem, insanamente, para que todos tomem cloroquina e outros medicamentos reprovados pelos cientistas, até cenas repugnantes de racismo. Ofensas de clientes a entregadores, truculência policial nos arredores de favelas, em shoppings, nos quais os negros são vistos como suspeitos e abordados de forma desrespeitosa e, às vezes violenta, têm sido ainda mais comuns do que sempre foram.

A banalização da violência policial no Brasil, que sempre teve ingredientes históricos de racismo, está tão enraizada que um ato como o que levou à morte o negro George Floyd, nos EUA, não desencadearia no nosso território a explosão de revolta que se espalhou pelo país norte-americano. Aqui, a reação a assassinatos de inocentes lançam, no máximo, as favelas às ruas, mas nunca se transformaram num movimento que se espalhasse pelo País, com a adesão de outras classes sociais.

A sociedade norte-americana ficou chocada porque, embora tenha pleno conhecimento do tratamento preconceituoso e desrespeitoso dispensado aos negros pela polícia de lá, tratou-se de um caso isolado de assassinato de inocente cometido por policiais. Prova disso é que, quando da morte de George Floyd, o noticiário nos canais de TV americanos sobre assassinatos de negros por policiais não foi recheado de outros fatos recentes, mas de registros de atrocidades semelhantes ocorridas com intervalos de anos.

A truculência policial nos EUA nunca atingiu as raias do extermínio que temos por aqui há um longo período de tempo. Esse dado concreto brasileiro, notadamente relativo à realidade do Rio de Janeiro, anestesia a maior parte da população para esse tipo de inaceitável ocorrência. Aliás, por conta da repercussão na mídia mundial causada pelo assassinato do inocente George Floyd, me arrisco a dizer que a adesão aos protestos por aqui foi muito superior às manifestações mais numerosas já vistas reunindo moradores das favelas do Rio de Janeiro em protestos por inocentes assassinados.

Se o sentimento racista leva um cidadão comum a humilhar um entregador por aplicativo, imagine a que ponto pode chegar o racismo de um homem armado que integra as fileiras de uma instituição policial que, historicamente, tem preferido os negros na seleção de seus alvos e optado, muitas vezes, pela eliminação física, ao invés da detenção e da retirada da liberdade dos autores de crimes. Como bem disse esta semana a professora de criminologia Vera Malagutti Batista, num seminário virtual: "O Brasil adora matar preto e favelado!".

Ricardo Gouveia é jornalista, pai de três filhos e apaixonado pela língua portuguesa escrita e cantada

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