Confinamento sem espelho (Ricardo Gouveia)

05/08/2020

Textão de Ricardo Gouveia

Após passar três meses enfurnada com o marido dentro do apartamento, ambos produzindo em regime home office, Patrícia acordou na manhã de uma quarta-feira e foi direto ao banheiro lavar o rosto, para despertar e se preparar para a retomada do trabalho, que entrara pela madrugada e só permitiu que ela dormisse quando já eram quase 3h. Ao enxugar o rosto e olhar-se no espelho, a professora não gostou nenhum pouco do que viu: vários fios de cabelos brancos que não vinham sendo escamoteados pelas tinturas que costumava usar a cada 15 dias; a tez ligeiramente ressecada pela interrupção do hábito de hidratá-la diariamente; não conseguiu sequer se recordar da última vez que pintara os lábios.

Aliás, Patrícia notou que, depois de algum tempo no isolamento social, passara a se olhar menos no espelho, até porque a troca diária de roupas ficara muito limitada à mera substituição de shorts e camisetas. Além disso, a conciliação entre o magistério online e as tarefas domésticas, divididas com o marido, desde a dispensa provisória da empregada, assoberbou-a, como a ele também, fazendo com que a vaidade e o cuidado com a aparência ficassem relegados por um bom tempo.

Enquanto ela avaliava as consequências do isolamento social na sua imagem, Pedro acordou, entrou no banheiro, disse um "bom-dia" quase inaudível, levantou a tampa do vaso, urinou, deu descarga e saiu em direção à cozinha, vestido de cueca, única peça que o cobriria na maior parte do dia, a não ser que tivesse uma entrevista com algum cliente ou uma reunião com o sócio do escritório de advocacia, situações que vinham sendo muito esporádicas. Olhando-se detidamente no espelho, como havia semanas não fazia, Patrícia constatou que a sua vida a dois estava como o seu rosto: desarrumada, sem frescor e estímulos.

Nos últimos três meses, as conversas, os beijos e as transas foram ficando cada vez mais espaçados e monótonos, como se estivessem juntos há mais de 30 anos juntos. Em cinco anos de casamento, pela primeira vez, a vida conjugal foi atingida, abruptamente, por uma rotina incontornável imposta pela clausura a que estavam confinados por causa da pandemia. Ela teve dúvidas se o seu abatimento era preponderantemente decorrente da baixa qualidade da relação ou se, na verdade, uma consequência do abandono da vaidade. Refletiu que, talvez, o amor próprio estivesse muito mais em baixa do que o amor mútuo. Afinal, Pedro, assim como ela, sempre foi um cara muito vaidoso e, por isso, cuidadoso com a sua estampa. A pandemia, em curtíssimo tempo, os levou a níveis de desleixo até então impensáveis.

Ela foi até a cozinha, aproximou-se do marido que acabara de dar uma golada no café-com-leite, curvou-se sobre o seu rosto, disse-lhe "bom-dia" e beijou-o. Em princípio, espantado, pois o triste cotidiano os afastara da troca de beijos, ele, em seguida, entendeu a mensagem de que deveriam se esforçar para resgatar a vaidade, a autoestima e a paixão que esfriara nos últimos meses. Compreendeu o silencioso recado de amor que ela lhe enviava.

Decididos a cumprir à risca o isolamento social enquanto fosse necessário, já que as suas condições profissionais lhes garantiam o privilégio de trabalhar em casa, sem se expor ao risco da contaminação, Pedro e Patrícia não haviam saído de casa uma única vez, nos últimos três meses. Continuariam assim, mas decidiram que hoje se arrumariam para um jantar especial e regado a vinho, sem sair de casa.

Finalizaram as suas tarefas profissionais e deram uma boa limpeza e arrumação na casa, que, como as suas vidas, andava bem empoeirada. Ele fez a barba que crescia de forma incontida havia uma semana e separou uma roupa elegante. Ela passou mais de uma hora dentro do banheiro, pintando os cabelos, se depilando e espalhando cremes específicos para cada parte do corpo, enquanto o marido preparava um delicioso risoto de camarão e escolhia na pequena adega um malbec argentino e um cabernet sauvignon chileno.

Os cheiros produzidos pela limpeza do apartamento, o cozimento da comida, a loção pós-barba, os cremes e os perfumes femininos entranharam no ambiente uma agradável combinação de olores que encheu o apartamento de intensas energias. Elegantemente vestidos, saborearam concentradamente cada garfada de risoto, cada gole dos tintos, cada troca de salivas, olhares e sussurros, despiram-se e dormiram entrelaçados, com a sensação de que ganharam fôlego para suportar, se necessário, mais alguns meses de confinamento a dois. Quando os cabelos voltarem a ficar brancos, a barba crescer negligentemente, deixarem de se beijar ao acordar e, por fim, quando ele passar novamente a ficar o dia inteiro trabalhando no laptop vestido somente de cueca, precisarão de uma nova ideia.

Ricardo Gouveia é jornalista, pai de três filhos e apaixonado pela língua portuguesa escrita e cantada

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