Detenham o progresso! (Ricardo Gouveia)

22/07/2020

Textão de Ricardo Gouveia

A Organização Mundial da Saúde (OMS) está alarmada com o impacto da Covid-19 nas populações indígenas das Américas, que já registraram 70 mil casos de contaminação, com duas mil vítimas fatais. De uma forma ou de outra, continua em andamento o processo de dizimação dos povos indígenas, iniciado no Brasil em 1.500, quando, calcula-se, viviam no território mais de três milhões de nativos divididos em mil tribos diferentes. Até hoje eles continuam sendo exterminados a tiros, a facadas, a doenças levadas às tribos pelos garimpeiros e grileiros que as invadem avassaladoramente.

Estima-se que, em 1650, a população indígena no País foi reduzida de três milhões para 700 mil, com o desaparecimento de 80 povos. Atualmente, vivem no País cerca de 800 mil indígenas, sendo cerca de 500 mil na zona rural e aproximadamente 300 mil nas regiões urbanas. O mais recente censo demográfico indica ainda a existência de 305 etnias e 274 línguas indígenas. Nem é preciso destacar a riqueza cultural que transborda desse universo de etnias e línguas que vão desaparecendo com a eliminação física dos nativos.

É impressionante e assustadora a força bruta do interesse econômico que, impiedosamente, promove o garimpo ilegal, as queimadas e o desmatamento nas terras indígenas e a matança dos seus habitantes. O cenário é desolador: destruição do meio ambiente e da cultura dos povos que sempre foram os verdadeiros donos desta terra. Como a grande maioria da população está concentrada nos centros urbanos, há mais ou menos um século, a relação do grande contingente de habitantes brasileiros com a vida rural é muito distante. Diante dos que vivem enfurnados dentro da mata, então, mais ainda. Veja a cara de paisagem na face do homem urbano frente à tragédia indígena.

Além do distanciamento sociológico que, no Brasil, resulta num estranho desinteresse por manifestações culturais rurais que estão desatreladas dos ambientes urbanos e modernos, acho que às vezes tal sentimento pode atingir as raias da indiferença. A vida dos indígenas, com os seus hábitos seculares de sobrevivência, parece ser considerada inútil para a necessidade de crescimento econômico que passa ao largo dos cocares. Assim como tudo ou todos que são considerados inúteis ao desenvolvimento almejado pelas grandes corporações econômicas - os governos, de um modo geral, estão a serviço delas -, penso que a existência dos povos indígenas é, para o capital, algo absolutamente dispensável.

Dentro desse conceito de inutilidade e indiferença que vejo ser atribuído aos indígenas, como também aos idosos, que são quase 75% das vítimas fatais da pandemia no Brasil, conforme ressaltei no último artigo aqui publicado, as suas vidas tornam-se desimportantes. "Índio e velho não servem para nada!", tem quem grite.

No final das contas, para a máquina econômica, valemos apenas pelo quanto somos úteis. Ou seja, não valemos nada. Cada vida humana é única na sua individualidade e, por isso, deve ser profundamente respeitada pelo simples fato de ser, o que torna irrelevantíssima a capacidade utilitária da pessoa, do ponto de vista da valoração existencial.

Proteger os indígenas é, de certo modo, em razão da sua impotência frente à brutalidade do homem branco, como proteger as crianças e os velhos. Façamos alguma coisa, nem que seja gritar nas redes sociais, para salvar os povos da floresta, antes que se torne uma realidade irreversível o verso cantado por Caetano Veloso na sua canção "O índio": ...depois de exterminada a última nação indígena...

Ricardo Gouveia é pai de três filhos, jornalista e apaixonado pela língua portuguesa escrita e cantada

© 2020: Todos os direitos reservados TEXTÃO - cada texto aqui publicado é de inteira responsabilidade do seu respectivo autor.
Desenvolvido por Webnode
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora