Cidade sem alma (Ricardo Gouveia)

29/07/2020

Textão de Ricardo Gouevia

Há mais de quatro meses não cumpro a rotina de ir ao Centro do Rio, ao menos uma vez por semana, por razões profissionais. Aliás, com o advento do regime home office, desde o início do isolamento social nunca mais fui à rua a trabalho. E das poucas vezes que me lancei à via pública, devidamente mascarado, foi quando isso se tornou inevitável: fui ao dentista e ao supermercado. Saí de casa para fazer compras naquele período de isolamento em que as entregas das mercadorias estavam levando de dois a três dias. Atualmente, eles as entregam em horas. Não saio de casa nem para comprar comida. Nem para ir ao Centro do Rio, hoje dolorosamente esvaziado pela pandemia.

De acordo com a Sociedade de Amigos da Rua da Carioca e Adjacências (Sarca), 1.800 das 2.500 lojas do Centro do Rio continuam fechadas, mesmo com a autorização de reabertura concedida pela prefeitura a partir do início de julho. A Sarca considera que grande parte das 1.800 lojas que não reabriram dificilmente retomará as suas atividades, depois de quatro meses de interrupção. Essa é uma triste realidade decorrente não somente da pandemia, mas principalmente da omissão das autoridades públicas em socorrer o País das gravíssimas consequências econômicas provocadas pela Covid-19.

Se as dificuldades enfrentadas pela população para receber o auxílio emergencial de R$ 600 foram enormes e humilhantes, para os microempresários e pequenos empresários, que empregam mais de 70% dos trabalhadores do País, os obstáculos foram intransponíveis. Após mais de quatro meses de fechamento das atividades não essenciais, até hoje os pequenos empreendedores de todo o país praticamente não conseguiram ter acesso a linhas de crédito que manteriam vivos os seus negócios e preservados os postos de trabalho por eles gerados. Por conta de burocracias incontornáveis e juros extorsivos presentes nas linhas de crédito disponíveis, eles continuam desamparados. Assim como o Centro do Rio, que já vinha desamparado em vários sentidos nos últimos anos.

As obras de reurbanização do Centro, com mudanças no trânsito e abertura de linhas para o VLT Carioca (Veículo leve sobre trilhos), sem o devido planejamento, sufocou o comércio em algumas ruas, como a Marechal Floriano e da Carioca. Na época em que eu ia ao Centro, antes da pandemia, constatei a diminuição da circulação de carros e pessoas nessas duas ruas, nas quais várias lojas estavam com as suas portas arriadas e com tabuletas penduradas com inscrições do tipo "Vende-se" ou "Passo o ponto".

O Centro do Rio, que já vinha abandonado, ficou quase uma cidade-fantasma no período de maior engajamento ao isolamento social. Agora, com a retomada indevida de atividades não essenciais, é um espaço esvaziado. Sem o Centro, o Rio é uma cidade sem alma. Foi ali que a cidade cresceu. Fora dali, até o início do século passado, tudo era zona rural, com os seus engenhos e fazendas. Para se ter uma ideia, há bairros que, hoje, sem engarrafamentos, estão situados a 15 ou 25 minutos do Centro, foram batizados de Engenho Novo e o Engenho Velho. Havia grandes plantações de cana-de-açúcar a 30 km do Centro do Rio, no início do século XX.

Com a pandemia, livrarias, restaurantes, bares e lojas de grande tradição do Centro da cidade fecharam definitivamente as suas portas. Entre elas a Casa Turuna, famosa por sua enorme banca de tecidos e fantasias de carnaval, e acessível às camadas mais pobres da população. Na nossa adolescência, eu e meu irmão juntávamos dinheiro e íamos à Turuna, episodicamente, comprar alguns metros de tecidos branco e preto, para aumentarmos, aos poucos, o tamanho da bandeira do clube de futebol dos nossos corações.

Alguns meses depois, com mais um pouco de dinheiro economizado, voltávamos à Turuna e comprávamos mais alguns metros de pano alvinegro. O tecido era entregue à nossa avó, que se sentava à máquina de costura e o juntava à bandeira do nosso time. Fizemos isso durante alguns anos. A bandeira foi aumentando, a ponto de ficar gigantesca.

Do tamanho da saudade de um tempo em que ir ao tumultuado Centro do Rio e ao Maracanã lotado era um prazer inenarrável e sem riscos.

Ricardo Gouveia é jornalista, pai de três filhos e apaixonado pela língua portuguesa escrita e cantada

© 2020: Todos os direitos reservados TEXTÃO - cada texto aqui publicado é de inteira responsabilidade do seu respectivo autor.
Desenvolvido por Webnode
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora