Casa, cama e confinamento conjugal (Ricardo Gouveia)

31/07/2020

Por quanto tempo um casamento resiste ao home office? O questionamento se torna cada vez mais pertinente, por conta das preocupantes cogitações feitas por cientistas, de que o mundo, muito provavelmente, viverá nos próximos anos uma sequência de novas pandemias provocadas por diferentes vírus. De acordo com os cientistas, a invasão humana no mundo natural torna propícia a transferência de doenças oriundas do ambiente selvagem para seres humanos. Segundo eles, nos últimos 20 anos, a humanidade foi ameaçada pela possibilidade de pandemias que, por pouco, acabaram não se confirmando, quando ocorreram as epidemias, logo controladas, de ebola, gripe suína, Sars, Mers e gripe aviária.

Mas o assunto deste artigo não é como o mundo irá enfrentar uma sequência de pandemias, mas como, mais especificamente, os casais que podem trabalhar em home office conseguirão enfrentar a rotina do confinamento, por longuíssimas temporadas, e preservar a qualidade das relações. Somente em pouco mais de três meses de Covid-19, houve um aumento no Brasil, segundo o Google, em comparação com o mesmo período do ano anterior, de 82% nas buscas com a expressão "como dar entrada no divórcio". Além disso, ainda de acordo com o Google, ocorreu o impressionante crescimento de 10.000% nas pesquisas para "divórcio online gratuito", o que reforça abissal desigualdade social e econômica que divide o país até na hora de uma separação conjugal.

Comprovadamente, a vida a dois diminui a expectativa emocional proveniente do intervalo dos encontros, ainda que frequentes, entre namorados, noivos, ficantes e outros de denominações que desconheço. Com cada um na sua casa, a ansiedade e o coração acelerado antecedem, especialmente, os primeiros encontros. Com o passar do tempo, mesmo os que permanecem muito apaixonados percebem que aquela incontrolável chama de maçarico perde parte da sua intensidade, ainda que ela permaneça flamejante.

Quando passam a colocar as escovas de dentes dentro do mesmo copo, o risco de a chama apagar-se é ainda maior. Isso se torna iminente em razão da combinação, que pode ser letal para o convívio, entre a diminuição do encantamento inicial e o desgaste da repetição cotidiana. Amizade, criatividade, resignação e outras receitas bastante conhecidas precisam ser postas em ação para preservar o interesse mútuo em vários âmbitos. Afinal, uma relação conjugal inclui trocas em diversos níveis, como existencial, emocional, intelectual e carnal, por meio de salivas, tempo, carinho, atenção, sabedoria...

Ao mesmo tempo em que a rotina da vida conjugal tende a diminuir o encantamento da relação, pode servir como antídoto a dedicação de cada um à sua individualidade, sobretudo no que diz respeito às atividades profissionais, que de um modo geral os mantêm afastados durante praticamente todo o dia. Mas, por outro lado, e com efeitos opostos, o confinamento conjugal por ininterruptas e renováveis 24 horas por dia pode lançar a relação no caos.

Pequenas diferenças de hábitos, relevadas por muitos anos, podem se transformar em grandes incômodos. Em situação de confinamento mútuo, divergências ideológicas manifestadas em comentários sem grandes desdobramentos podem gerar conflitos. Para piorar, temos as jornadas duplas ou até triplas impostas pelo isolamento, pois, além do home office, há a casa para cuidar e, na maioria dos casos, os filhos para criar, alimentar, lavar, passar, estudar...

Com a permanência do machismo no país, que já foi muito pior, as mulheres estão mais sobrecarregadas, de um modo geral, com as tarefas domésticas. Essa injusta situação potencializa nelas o sofrimento decorrente da angústia e do medo que todos nós, mais ou menos, estamos sentindo nos últimos tempos. Na vida entre casais do mesmo sexo não há espaço, naturalmente, para a desigualdade de gênero. Isto, porém, não impede que um sofra com a sobrecarga doméstica quando o outro impõe na relação um posicionamento dominante, culturalmente de macho, o que certamente resulta na repetição de outras desigualdades que extrapolam as estritamente domésticas.

Ao refletirmos sobre a pressão do confinamento conjugal, temos que considerar também que os escapes comuns, como sair do trabalho e, ao invés de ir para casa, partir direto para a academia ou um chope, com o objetivo de arrefecer o aborrecimento conjugal da véspera, se tornam inviáveis em tempos de pandemia.

A pandemia está pondo os casamentos à prova e trazendo à tona revelações de identidade, gostos e pensamentos, em sua maioria, decepcionantes - a julgar pelos dados divulgados pelo Google -, que somente a convivência inescapável por 24 horas foi capaz de proporcionar.

Se o ser humano não vive sem o outro e muitas vezes precisa dividir a casa e a cama com um representante desse "outro", é necessário repensar como evitar que se torne chata, irritante, aflitiva, entediante, angustiante, enfadonha e repetitiva a vida a dois, numa situação de confinamento que pode até se tornar quase permanente, considerando a previsão de cientistas. Acho que transformar a nova realidade conjugal será tão difícil, ou mais, do que descobrir a vacina para a cura da Covid-19, que já está na terceira fase de testes com humanos.

Ricardo Gouveia é jornalista, pai de três filhos e apaixonado pela língua portuguesa escrita e cantada

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